Vasco Graça Moura

Blues da morte de amor


já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah não
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
 
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
 
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes. uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete:- morrer ou não morrer, darling, ah, sim.  

As meninas


as minhas filhas nadam. a mais nova 
leva nos braços bóias pequeninas, 
a outra dá um salto e põe à prova 
o corpo esguio, as longas pernas finas: 

entre risadas como serpentinas, 
vai como a formosinha numa trova, 
salta a pés juntos, dedos nas narinas, 
e emerge ao sol que o seu cabelo escova. 

a água tem a pele azul-turquesa 
e brilhos e salpicos, e mergulham 
feitas pura alegria incandescente. 

e ficam, de ternura e de surpresa, 
nas toalhas de cor em que se embrulham, 
ninfinhas sobre a relva, de repente. 

As aves migram em Setembro


as aves migram em setembro.
nem vou com elas, nem
guardo delas
a mínima memória.

escurece mais cedo,
o tempo não se rouba,
escoa-se como o frio
por uma camisola

até dentro da pele.
as aves migram
calmamente, eu
permaneço aqui

de guarda à água lisa que viu passar seus bandos
e em que hás-de debruçar-te.

Auto-retrato com a musa


1.
vejo-me ao espelho: a cara
severa dos sessenta,
alguns cabelos brancos,
os óculos por vezes
já mais embaciados.

sobrancelhas espessas,
nariz nem muito ou pouco,
sinal na face esquerda, 
golpe breve no queixo
(andanças da gilette).

ia a passar fumando 
mais uma cigarrilha
medindo em tempo e cinza 
coisas atrás de mim.
que coisas? tantas coisas,

palavras e objectos,
sentimentos, paisagens.
também pessoas, claro,
e desfocagens, tudo
o que assim se mistUra

e se entrevê no espelho, 
tingindo as suas águas 
de um dúbio maneirismo 
a que hoje cedo. e fico 
feito de tinta e feio.

2
quem amo o que é que pode 
fazer deste retrato?
nem sabê-lo de cor,
nem tê-lo encaixilhado, 
nem guardá-lo num livro,

nem rasgá-lo ou queimá-lo, 
mas pode pôr-se ao lado 
e ter prazer ou pena
por nos achar parecidos 
ou não achar. quem amo

não fica desenhado,
fica dentro de mim
e é quando mais me apago 
e deixo de me ver
e apenas me confundo,

amador transformado 
na própria coisa amada 
por muito imaginar. 
assim nem john ashberry, 
nem o parmegianino,

nem espelho convexo, 
nem mesmo auto-retrato. 
só uma sombra que é 
na sombra de quem amo 
provavelmente a minha.


3
quem amo tem cabelos
castanhos e castanhos
os olhos, o nariz
direito, a boca doce.
em mais ninguém conheço

tal porte do pescoço
nem tão esguias mãos
com aro de safira,
nem tanta luz tão húmida
que sai do seu olhar,

nem riso tão contente,
contido e comovente,
nem tão discretos gestos,
nem corpo tão macio
quem amo tem feições

de uma beleza grave
e música na alma
flutua nas volutas
de um madrigal antigo
em ondas de ternura.

é quando eu sinto a musa
pousando no meu ombro
sua cabeça, assim
me enredo horas a fio
e fico a magicar.

Borges e as rosas


sonhou as rosas, rosas de ninguém
de substâncias de sombras evanescentes,
e na roda das pétalas ausentes
ficou o olhar perdido, no vaivém
 
das brisas no jardim do esquecimento.
tinham carne de noite e de perfume
e tacteou-as devagar, o gume
afiou-se num macio desalento
 
de lhes ter dado o nome: rosas, rosas
factícias alastrando o seu vermelho
de golfadas de sangue ao vão do espelho
das águas e das luas ardilosas.
 
e soube que o real era essa imagem
devolvida no espelho, de passagem.