Luís Quintais

Ave


Uma ave agonizante
entrou-te no quarto,

apenas uma sombra
que se enlaça
noutra:

assim definiste
a memória,

a cidade
que se mineraliza
quando
rodeias
essa sombra-ave

com os dedos
apavorados.

Fome


A fome desata os nós da consciente
vontade que a escrita denuncia.

Literacias são perfeitas rituais
entregas do acaso,

e tu recensearás acasos,
porque a fome te acomete

sem reservas, sem interlúdios.
O que és transbordará

em longos signos negros.
A luz virá como um sortilégio

de Verão em pleno Inverno.
Um bicho gritará a sem harmonia

que te desenha, a tão real ficção
dessa fome.

Homenagem à adjectivação


Turbulento e caótico é o mundo, dear.
Meteorologias são bichos
de irrmediável fulgurante rápida incivilidade.

Do gelo


Para J G Ballard

À psicologia profunda tudo devemos.
Acima de todas as coisas, devemos-lhe
o que não comunica, o que a inocência
e o esquecimento traem.
É à ímpia hipótese que tudo devemos:
que no cérebro espelha abominações
e que nos faz balbuciar o seu fogo
e o seu reino.

As lições do gelo são a melhor explicação
da arte das cesuras e dos caprichos:
o que não fará certamente a cidade,
o que não compõe um segredo
que não seja a plena paixão do ilegível.

Borges


O cão chama-se agora Borges.
Num sítio de espelhos onde os nomes se encontram
o cão responde ao nome recente
no seu modo-gume de responder.
Assim é todo o reconhecimento.

Antes de chegar à nossa porta
o cão teria outro nome,
e antes dessa porta,
outro nome haveria de ter o cão.
A infinita regressão dos seus nomes
e das portas que o receberam
traz-nos o eco das infatigáveis decifrações.
O cão adormece na sala.
Os sonhos do cão contêm o colapso dos nomes
na sua carne.
Aí escrever-se-á
o que não saberemos ler.